quinta-feira, 17 de abril de 2014

A grande recusa

Maurice Blanchot, em sua Conversa Infinita, nos traz a ideia de que convivemos eternamente com uma grande recusa: a de ficar junto do enigma que é a estranheza do fim singular. Relacionamo-nos com a estranheza da morte através de sentimentos de medo e angústia, pois esta é a grande experiência do desconhecido em si. Ou poderíamos chamar de uma não-experiência, já que não vivemos a nossa própria morte, no sentido de que vivemos apenas até o limite, sempre no limite, e nunca a morte em si, sendo ela a ausência de experiência, o nada, o fim singular.

Mas o que é a morte afinal, o que faz dela este fim singular? Quando penso sobre isso me vem à mente um conto de Gabriel García Márquez, chamado “A terceira renúncia”, que narra os pensamentos claustrofóbicos de uma consciência presa em um corpo que morre, acompanhando seu processo degenerativo até os seus ossos virarem pó. A morte, para o personagem, é a sua doença: morreu pela primeira vez aos sete anos, e desde então cresce dentro de um caixão, em um quarto velado por flores e velas. Experimenta uma morte viva, está morto de fato, mas teme que seja enterrado “vivo”. Vida e morte se confundem em sua mórbida existência, até que um dia um cheiro estranho invade o seu quarto e permanece lá: é o cheiro do seu corpo entrando em decomposição. O personagem imediatamente se desespera porque é levado pela primeira vez a pensar em seu fim propriamente dito, em seu corpo de desmanchando:

“Na poeira bíblica da morte. Talvez sinta, então, um ligeiro pesar; pesar por não ser um cadáver formal, anatômico, mas um cadáver imaginário, abstrato, construído unicamente na recordação esmaecida de seus parentes. Saberá, então, que vai subir pelos vasos capilares de uma macieira e despertar mordido pela fome de um menino numa manhã outonal. Saberá, então - e isso sim o entristecia -, que perdeu sua unidade:  que já não é - sequer - um morto ordinário, um cadáver comum”

A morte é vista pelo escritor como a definitiva perda da “unidade”. Mas de que unidade estamos falando? A unidade da consciência, a unidade do corpo? Unidade que se esvai para voltar “do pó ao pó”, ou multiplicidade que se desfaz para voltar a ser unidade, como os átomos que voltam a ser maçã para matar a fome de um menino. Falar sobre a morte é difícil, e retomando Blanchot: de que forma é possível acessar a experiência do desconhecido enquanto desconhecido? Como compreender a “não experiência” da morte? Para falar sobre o finito e o infinito, talvez seja o momento de materializar um pensamento que me invade de tempos em tempos, e que identifico um pouco com essa ideia da angústia que é estar atado a si mesmo através do corpo e da consciência.

Às vezes percebo que essa voz dentro de mim nunca irá se calar. O que parece óbvio de antemão, de repente se torna desesperador. Nunca vou parar de pensar com essa única voz muda que não se cala. Nunca vou deixar de ser eu, para sempre até o momento de minha morte. Mas se eu acreditar que minha existência se limita ao tempo de minha vida, se for mesmo assim, o que dura até a morte para mim seria eterno, como em um pequeno infinito particular. A angústia decorrente desse pensamento aos poucos vai se materializando em um nó na garganta, em um coração acelerado. Fico com medo. Estaria enlouquecendo? Não pode ser, pois esse pensamento me causa uma sensação de lucidez tão intensa, sinto o meu corpo tão vivo. Mas ainda assim é uma lucidez desesperadora, que me atravessa como lâmina e me faz repetir enlouquecidamente: estou presa aqui dentro!