segunda-feira, 24 de março de 2014

No avesso do buraco negro

Descobri que viagens de ônibus que levam algumas horas me proporcionam tempo e inspiração para cuspir alguns pensamentos em forma de bits. Vou começar pelo seguinte: nesses últimos dias (que agora que edito novamente esse texto já são outros dias) fiquei pensando sobre uma frase que ouvi: "quando as ideias estão em nossa cabeça, não estão em lugar algum". O pensamento precisa ganhar algum tipo de materialidade para existir, seja em palavras, discursos, formas, imagens. Mas qual é a forma do pensamento? E que tipo de materialidade essas palavras têm? Essas que saem da minha boca e atingem pensamentos outros ou essas que deslizam pelos meus dedos e vão parar em algum não-lugar do ciberespaço? Refletindo sobre as formas que o pensamento assume, resolvi tentar retomar um hábito de me subjetivar através da escrita. Essa que tenta colocar os fluxos de pensamento no papel.

Não sei se o que faço agora é realmente colocar os fluxos no "papel", pois esse texto que vos fala já se revirou tanto pelos meus dedos sendo escrito e reescrito, que é quase uma imagem em movimento do meu pensamento. Para incrementar essa escrita atemporal e em movimento, encontrei o fragmento abaixo, ao revirar os meus arquivos digitais, cujo título é o que coloquei acima, escrito há alguns meses, incompleto e perdido no tempo, e que através do abstrato ato de recortar e colar, agora mora neste:

"Depois de uma tarde revirando pedaços de mim em meio a escritos de minha adolescência, percebi que está mais do que na hora de me libertar dessa prisão de ventre criativa que está me impedindo de colocar meus pensamentos no papel - ou, nesses tempos líquidos, na tela do tablet.

'Escrevo para quem?' perguntava a Alana do passado à Alana do presente, conectadas agora pelos papéis soltos escritos à lápis. Ela esperava que eu lhe respondesse: para mim mesma na posteridade, mas depois de ser inundada nos últimos dias pelos devaneios de Slavoj Zizek sobre as teorias de Jacques Lacan, eu lhe diria que ela não escreveu para mim, mas para o Grande Outro, assim como na ideia de Lacan de que a carta não enviada é a mais verdadeira. Se fosse para mim, eu não precisaria escrever. A partir do momento que minhas ideias são externalizadas no papel, o Grande Outro sabe."

E o fragmento termina aqui. O porquê do título é um mistério até mesmo para mim. Eu queria saber agora como essa Alana do futuro do pretérito iria se deslocar pelas palavras desde o Grande Outro Lacaniano até a teoria dos "buracos brancos". Pelo que ficou evidente, eu só me lembro de estar fascinada pelo livro do Zizek que acabara de ler, e de estar me perguntando sobre o que seria o tal do "Real". Talvez esses questionamentos sobre a constituição da realidade me acompanhem desde que assisti ao filme "Matrix", ainda criança.

Confesso que até hoje estou perdida entre a miscelânea de referências dos irmãos Wachowski, somadas posteriormente a teorias cósmicas sobre universos paralelos, e mais recentemente ao labirinto das diversas teorias psicológicas sobre a constituição do sujeito. Ao fim de tudo, continuo sem ter certeza de muita coisa. Jamais saberei a frase seguinte que completaria o fragmento do texto, afinal, ela nunca existiu. E onde existiu tudo o que já vivi e não foi registrado na materialidade das palavras e das imagens? Do que é feita a memória?

Essas perguntas me remetem a uma cena do filme "Waking Life", que retrata um diálogo entre duas mulheres que, ao reverem suas fotografias antigas, questionam-se sobre qual é o elemento que faz com que haja uma continuidade existencial entre o bebê que já fomos, registrado nas fotografias, e o adulto que somos hoje, tomando o fato de que as moléculas que formam a materialidade de nossos corpos já foram renovadas tantas e tantas vezes, fazendo com que nos tornássemos materialmente outras pessoas, outros corpos. Mas o que é que ainda nos conecta consigo mesmos? Julian Baggini me responde - ou em confunde - com suas reflexões filosóficas em "The pig who wants to be eaten", sobre a possível perda da identidade de um barco que teve todas as suas peças substituídas, e sobre a possibilidade de não-fragmentação do eu diante de uma máquina de teletransporte que desorganiza e organiza novamente todas as moléculas de nossos corpos.

Algo ainda nos conecta. Mas até quando, se as ideias armazenadas nessa massa cinzenta e mole não estão em lugar algum, e a memória não registrada nada mais é do que um amontoado de frágeis ideias? Me lembro novamente da finitude. Talvez seja melhor parar quando se fica muito abstrato. Sei que preciso continuar, mas prefiro não.