sábado, 14 de junho de 2014

Variações sobre um artista da fome

Aos poucos percebo que realmente gosto de escrever sobre diferentes percepções do fim de tarde na cidade. É quase como um momento mágico, esse, em que algumas banalidades cotidianas vestem-se de absurdos diante dos meus olhos. Um certo tipo de olhar se aguça, como o de um antropólogo urbano que estranha sua própria cidade.

É no fim de tarde que, no ônibus em que eu voltava para casa depois de um dia agitado, um homem que se identifica como um estrangeiro uruguaio embarca e, em voz alta e sotaque castelhano, dirige-se para todos os passageiros que ali se encontram, contando brevemente sua história: mudou-se há pouco tempo para o Brasil e por isso ainda não tem sua carteira de trabalho, o que o impossibilita de arrumar um emprego formal. Sendo assim, para ganhar algum dinheiro usa um pequeno "dom"  que herdou e aprendeu de sua mãe, o de cantar.

O homem então entona uma canção uruguaia forçosamente afinada e romântica, um bolero, define ele. Sua voz ecoa pelo ônibus lotado, concorrendo para ser mais alta que os barulhos do veículo e do trânsito lá fora. A situação é inusitada. O bolero uruguaio modifica a atmosfera do ônibus que, em meio à agitação da hora do rush, carrega sujeitos cansados e apressados de volta para casa, enclausurados por seus pensamentos refletidos na janela ou por seus fones de ouvido e dispositivos móveis que lhes transportam para algum universo digital. A canção nos desacomoda e nos força a um novo regime de atenção comum. A música se estende ao ponto de alguns passageiros começarem a descer, outros a subir e assistirem à inusitada apresentação a partir da metade.

Como um artista da fome que se expõe à multidão do lado de fora de sua jaula, com a diferença de que dessa vez a plateia de passageiros enclausura-se junto ao artista, o cantor móvel põe o seu corpo à prova, encolhe-se em sua vida nua diante de dezenas de olhares indiferentes ou não amistosos. Diante de seu trágico espetáculo, os passageiros trocam entre si e em silêncio uma mescla de sentimentos de repulsa, pena, contemplação ou vergonha. Ninguém questiona o artista da fome sobre o verdadeiro motivo do seu jejum, que é revelado apenas no final do conto kafkiano. Já em seu leito de morte - no qual vivera durante toda sua vida - o artista revela: não comia porque nunca encontrou nenhum alimento que lhe agradasse.

O ritmo do bolero cantado à capela, a estranheza e tragicidade da situação me remetem por alguma conexão neuronal imprevisível à cena do Clube Silencio do filme Mulholland Drive, de David Lynch. Em uma espécie de teatro, a cantora que se apresenta e envolve o espectador em uma intensa e emotiva performance da música Llorando, inusitadamente desmaia no palco enquanto sua voz continua ecoando. Uma voz sem corpo. Fomos enganados. Em minha breve viagem, eu desço do ônibus antes da música acabar. Será que a plateia aplaudiu ao final da canção?

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